quinta-feira, 13 de setembro de 2012

ATO VII - Ensaio - Ricardo Piglia


eric blog
ANO I
N.7
São Paulo
2012


Teríamos que criar uma Enciclopédia Biográfica de Tradutores Imortais (e invisíveis). Já pensou que ótimo? O contrário da Enciclopédia de Tlön, uma coisa mais na linha de Manganelli ou das biografias imaginárias de Marcel Schwob, mas detalhadas e reais, uma lista de obscuros personagens extraordinários, escritores assalariados que escrevem a tantos centavos por palavra, os únicos verdadeiros profissionais da literatura, os novos autores de folhetim, que vivem dedicados à literatura, mas como escritores clandestinos, malvistos e mal pagos, os verdadeiros malditos, sempre postergados, sempre ausentes, e que por isso mesmo serão talvez os grandes criadores do futuro.
Ricardo Piglia em conversa com Roberto Bolaño
El País, 2001; Caderno Mais, 2004.


ATO VII

Existe o romance argentino?
Ricardo Piglia

Título original: ¿Existe la novela argentina?

Intervención en el debate “Sobre la novela argentina”.
Primer encuentro de Literatura y Crítica.
Universidad Nacional del Litoral, 1986.

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2009.


No Transatlântico, de Gombrowicz (para começar com um dos melhores romances escritos neste país) há uma cena memorável. Se trata de uma espécie de piada sarcástica entre um obscuro escritor polonês, certamente chamado “Gombrowicz”, e um escritor argentino em que se identificam facilmente os traços de Eduardo Mallea, o romancista argentino por excelência nesses anos. Este “Mallea” (que também pode ser Mujica Láinez mas sobretudo lembra Carlos Argentino Daneri) posa de refinado e erudito e passeia pelo inferno das influências: cada vez que “Gombrowicz” fala lhe faz ver que tudo o que ele diz já foi dito por outro. Despojado de sua originalidade este europeu aristocrático e vanguardista se vê empurrado quase sem se dar conta para a barbárie. A partir daí a política de “Gombrowicz” nesse duelo será a tática da ironia selvagem e da maldição hermética: atua como se houvesse esperado que atuassem os ranqueles no livro de Mansilla.

Essa cena me agrada muito: circulam aí as peculiaridades e as intrigas da ficção argentina. As linguagens estrangeiras, a guerra e a paixão pelas citações. São os problemas da inferioridade cultural dos que estão colocados em jogo e ficcionalizados. Transatlântico nesse sentido é uma versão ampliada e nacional de Ferdydurke: o inferior, o imaturo e, sobretudo, não desenvolvido é aqui a tradição polonesa, heroica e romântica. O que acontece quando se pertence a uma cultura secundária? O que acontece quando se escreve em uma língua marginal? Sobre essas questões Gombrowicz reflete em seu Diário e a cultura argentina lhe serve de laboratório para experimentar suas hipóteses.

Nesse ponto Borges e Gombrowicz se aproximam. Basta pensar em um dos textos fundamentais da poética borgiana: “O escritor argentino e a tradição”. O que quer dizer a tradição argentina? Borges parte dessa pergunta e o ensaio é um manifesto que acompanha a construção ficcional de “O aleph”, seu relato sobre a escrita nacional. Como se tornar universal nesse subúrbio do mundo? Como escapar do nacionalismo sem deixar de ser “argentino” (“ou polonês”)? Há que ser “polonês” (ou “argentino”) ou resignar-se a ser um “europeu exilado” (como Gombrowicz em Buenos Aires)? No Alcorão, já se sabe muito bem, não tem camelos mas o universo, cifrado em um aleph (talvez apócrifo, talvez um falso aleph), pode estar no sótão de uma casa da Rua Garay, no bairro de Constituición, invadido pelos italianos e pela modernidade kitsch.

A tese central do ensaio de Borges é que as literaturas secundárias e marginais, deslocadas das grandes correntes europeias têm a possibilidade de uma direção própria, “irreverente”, das grandes tradições. Borges cita como exemplo dessa condição, junto com a literatura argentina, a cultura judaica e a literatura irlandesa. Sem dúvida, poderíamos acrescentar nessa lista a literatura polonesa e em especial Gombrowicz.

Povos de fronteira, que vivem entre duas histórias, em dois tempos e muitas vezes em duas línguas. Uma cultura nacional dispersa e fraturada, em tensão com uma tradição dominante de alta cultura estrangeira. Para Borges (como para Gombrowicz) esse lugar incerto permite um uso específico da herança cultural: os mecanismos de falsificação, a tentação pelo roubo, a tradução como plágio, a mescla, a combinação de registros, a desordem de filiações. Essa seria a tradição argentina.

E quando digo tradição, quero dizer a grande tradição: a história dos estilos.

É possível imaginar a cena do Transatlântico falada em francês (e isso não a faria menos “argentina”). Ou se deve imaginar o espanhol de Gombrowicz. E o que teria acontecido se Gombrowicz tivesse escrito Transatlântico em espanhol? Quero dizer o que teria acontecido se Gombrowicz tivesse feito como Conrad? (um polonês que, como todos sabemos, mudou de língua e ajudou a definir o inglês literário moderno). Podemos desconfiar dos efeitos do espanhol de Gombrowicz na literatura argentina. Eu penso imediatamente em Roberto Arlt. Alguém que quis denegri-lo disse que ele falava o lunfardo com sotaque estrangeiro. Essa é uma excelente definição do efeito que produz seu estilo. E serve também para imaginar o que foi o espanhol de Gombrowicz: essa mistura rara de formas populares e sotaque eslavo.

Viver em outra língua, tem sido dito, é a experiência do romance moderno: Conrad, claro, ou Jerzy Kosinski, mas também Nabokov, Beckett ou Isak Dinesen. O polonês era uma língua que Gombrowicz usava quase exclusivamente na escrita, como se fosse um dialeto, uma língua privada. Por isso Transatlântico, primeiro romance que escreve no exílio quinze anos depois de Ferdydurke, estabelece um pacto extremo com a língua polonesa. O romance é quase intraduzível, como sucede sempre que um artista está longe de sua língua e mantém com ela uma relação excessiva onde se mesclam o ódio e a nostalgia. Ou não é Finnegans Wake o grande texto da língua exilada? Digo isso porque me parece que a estranheza é a marca dos grandes estilos que foram criados no romance argentino do século XX: o de Roberto Arlt e o de Macedonio Fernández. Parecem línguas exiladas: soam como o espanhol de Gombrowicz.

Quando penso no cruzamento de duas línguas imediatamente lembro de Borges, o espanhol de Borges, preciso e claro, quase perfeito. Um estilo cuja genealogia o próprio Borges remontava a Paul Groussac. Um europeu aclimatado no Prata que diferente de Gombrowicz mudou de língua e passou a escrever em espanhol e definir, pela primeira vez, as normas do estilo literário na Argentina. (Nesse sentido é preciso dizer que nosso Conrad é Groussac). Ali Borges busca as origens “argentinas” de seu estilo. Certamente qualquer um de nós encontra hoje facilmente ecos borgianos na escrita de Groussac (mas isso é culpa de “Kafka e seus precursores”).

O estilo de Borges produz um efeito paradoxal: estilo inimitável (mas fácil de plagiar), as peculiaridades de sua escrita têm sido convertidas nas vantagens escolares do bom uso da língua. “Para nós escrever bem era escrever como Lugones”, dizia Borges, definindo perversamente seu próprio lugar na literatura argentina contemporânea. Como calar epígonos? (Para escapar às vezes é preciso mudar de língua). 

O estilo de Borges influenciou retrospectivamente na história e na hierarquia dos estilos na literatura argentina. Groussac, Lugones, Borges: essa linha define as convenções dominantes da língua literária. Para essa tradição os estilos de Arlt e de Macedonio são línguas estrangeiras.

Borges leva à perfeição um estilo construído a partir de uma relação deslocada com a língua materna. Tensão entre o idioma em que se lê e o idioma em que se escreve que Borges condensou em uma só anedota (sem dúvida apócrifa). “O primeiro livro que li na minha vida”, disse, “foi o Quixote em inglês. Quando li no original pensei que era uma tradução mal feita”. (Nessa anedota já está, certamente, o Pierre Menard). Como ler o espanhol como se fosse o inglês? Ou melhor: como escrever em um espanhol que tenha a precisão do inglês mas que conserve os ritmos e os tons da fala nacional? Quando resolveu esse dilema Borges construiu uma das melhores prosas escrita em espanhol desde Quevedo.

Da relação de Gombrowicz com as duas línguas, do cruzamento entre o polonês e o espanhol, nos fica a tradução argentina de Ferdydurke, publicada em 1947. Conheço poucas experiências literárias tão extravagantes e tão significativas. Gombrowicz escrevia um primeiro rascunho modificando o romance para um espanhol inesperado e quase onírico, que apenas conhecia. Um escritor que escreve em uma língua que não conhece ou que conhece pouco e que mantém uma relação externa e fascinante. Ou se vocês preferem: um grande romancista que explora uma língua desconhecida, tratando de levar para o outro lado os ritmos de sua prosa polonesa. A tendência de Gombrowicz, segundo contam, era inventar uma língua nova: não criar neologismos (ainda que existam no romance, como os inesquecíveis cuculeítos) senão a forçar o sentido das palavras, deslocadas de um contexto a outro, e obrigá-las a aceitar novos significados. Sobre esse material primário começava o trabalho de uma equipe eclética e delirante “sob a presidência de Virgilio Piñera, distinto representante das letras da distante Cuba”, segundo recorda Gombrowicz no prefácio à primeira edição. Gombrowicz e Piñera estavam rodeados por um grupo móvel de ajudantes entre os quais, certamente, os paroquianos e os jogadores de xadrez e de baralho, que frequentavam a Confeitaria Rex e contribuíam com suas opiniões linguísticas quando as discussões subiam muito de tom. Esse grupo não conhecia o polonês e os debates muitas vezes eram em francês, língua que Gombrowicz e Piñera também cruzavam quando o espanhol não admitia novas distorções. Cubano, francês, polonês, “argentino”: o que se chama de mescla verbal, uma matéria viva.

Gombrowicz de fato reescreveu Ferdydurke. É preciso comparar essa versão com as traduções em inglês ou em francês para logo notar que se trata de um texto único. Conhecemos até onde foi capaz de chegar Joyce quando traduziu do italiano o fragmento de “Ana Livia Plurabelle”, de Finnegans Wake; conhecemos as versões do inglês dos seus romances que nos deixou Beckett, mas é difícil imaginar uma experiência parecida a de Gombrowicz com Ferdydurke, em Buenos Aires, no andar de cima do Café Rex da Rua Corrientes, em meados dos anos 1940.

As traduções têm uma importância decisiva na história dos estilos. O Ferdydurke “argentino” de Gombrowicz é um dos textos mais singulares de nossa literatura. Antes de mais nada é preciso dizer que é uma tradução mal feita no sentido em que Borges assim falava da língua de Cervantes. Na versão argentina de Ferdydurke o espanhol está forjado quase até o limite, crispado e artificial, parece uma língua futura. Soa na realidade como uma combinação (um cruzamento) dos estilos de Roberto Arlt e de Macedonio Fernández.

E há algo disso, eu diria. Como se o Ferdydurke “argentino” se ligasse em segredo às linhas centrais do romance argentino contemporâneo. Hoje que o debate sobre o estilo de Arlt parece esgotado, é preciso dizer que Gombrowicz foi um dos primeiros que abriu caminho para a leitura desses estilos que se desprendem das normas definidas do estilo médio e convencional. “Esse é um país”, escreveu, “onde o burburinho que ecoa a revista literária da elite refinada tem mais estilo que todos os redatores dessa mesma revista”. Queria dizer, obviamente, que as formas cristalizadas da língua literária, os modos e as  peculiaridades dos estilos já convencionais anulam qualquer musicalidade da língua e que nos lugares mais obscuros e inesperados podem ser captados os ritmos de um estilo novo.

Quanto a Macedonio Fernández, é preciso dizer que é o único escritor argentino em que realmente se encontra Gombrowicz. De fato Macedonio é o primeiro que conheceu um texto de Gombrowicz em espanhol. Em 1944 publica em sua revista Os papéis de Buenos Aires, o relato “Filifor cercado de meninos”, de Ferdydurke. Será que Macedonio e Gombrowicz se encontraram? Naqueles anos viviam isolados, em paupérrimos quartos de pensão, seguros de seu valor mas indecisos sobre o futuro de suas obras. Em mais de um sentido eram um para o outro o único leitor possível. Podemos supor quase com certeza que Macedonio leu Ferdydurke porque aparecem referências ao romance em um de seus papéis inéditos. E quanto a Gombrowicz era, sem dúvida, o único leitor possível do Museu do romance da eterna, o único, quero dizer, à altura do projeto macedoniano.

Arlt, Macedonio, Gombrowicz. O romance argentino se constrói nesses cruzamentos (mas também com outras intrigas). O romance argentino seria um romance polonês: quero dizer um romance polonês traduzido para um espanhol futuro, em um café de Buenos Aires, por um bando de conspiradores liderados por um conde apócrifo. Toda verdadeira tradição é clandestina e se constrói retrospectivamente e tem as características de um complô.

Pois bem, (depois de tudo) podemos falar assim? Podemos falar de um romance argentino? Que características teria?

Os romancistas argentinos escrevemos (também) para contestar essa pergunta.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

ATO VI - Manifesto - Nicanor Parra


eric blog
ANO I
N.6
São Paulo
2012


Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado
e não do jeito como todo mundo faz.
Anna Akhmátova, “Os mistérios do ofício”


ATO VI

Manifesto
Nicanor Parra

Título original: Manifiesto (1963)

http://www.letras.s5.com/archivoparra.htm

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2012.


Senhoras e senhores
Esta é nossa última palavra.
Nossa primeira e última palavra
Os poetas desceram do Olimpo.

Para os nossos grandes poetas
A poesia foi um objeto de luxo
Mas para nós
É um artigo de primeira necessidade:
Não podemos viver sem a poesia.

Diferente dos nossos grandes poetas 
E digo com todo respeito
Nós acreditamos
Que o poeta não é um alquimista
O poeta é um homem como todos os outros
Um pedreiro que constrói seu muro:
Um construtor de portas e janelas.

Nós conversamos
Na linguagem do dia a dia
Não acreditamos em signos cabalísticos.
Além disso tem outra coisa:
O poeta está aí
Para que a árvore não cresça torta.

Esta é a nossa mensagem.
Nós denunciamos o poeta demiurgo
O poeta Barata
O poeta Rato de Biblioteca.
Todos esses senhores
E digo isto com muito respeito
Devem ser processados e julgados
Por construir castelos suspensos
Por desperdiçar o espaço e o tempo
Escrevendo sonetos para a Lua
Por agrupar palavras ao acaso
Conforme a última moda de Paris.
Para nós não:
O pensamento não nasce na boca
Nasce no coração do coração.

Nós repudiamos
A poesia de óculos escuros
A poesia de capa e espada
A poesia de chapéu largo
Caminhamos por outro lado
A poesia a olho nu
A poesia de peito aberto
A poesia de cabeça descoberta.

Não acreditamos em ninfas nem tritões.
A poesia tem que ser isto:
Uma moça rodeada de contratempos
Ou não ser absolutamente nada.

No entanto, no plano político
Eles, nossos avôs imediatos,
Nossos bons avôs imediatos!
Se refrataram e se dispersaram
Ao passar pelo prisma de cristal.
Alguns poucos se tornaram comunistas.
E não sei se foi pra valer.
Vamos supor que foram comunistas,
O que sei é outra coisa:
Que não foram poetas populares,
Foram uns reverendos poetas burgueses.

É preciso dizer as coisas como são:
Apenas um ou outro
Soube chegar ao coração do povo.
Cada vez que puderam
Se declararam de palavra e de fato
Contra a poesia dirigida
Contra a poesia do presente
Contra poesia proletária.

Aceitemos que foram comunistas
Mas a poesia foi um desastre
Surrealismo de segunda mão
Decadentismo de terceira mão
Pranchas velhas devolvidas pelo mar.
Poesia adjetiva
Poesia nasal e gutural
Poesia arbitrária
Poesia copiada dos livros
Poesia baseada
Na revolução da palavra
Em circunstâncias
De que deve fundamentar-se
Na  revolução das ideias.
Poesia de círculo vicioso
Para meia dúzia de eleitos:
“Liberdade absoluta de expressão”.

Hoje fazemos o sinal-da-cruz perguntando
Para que escrever essas coisas
Para assustar o pequeno-burguês?
Tempo miseravelmente perdido!
O pequeno-burguês não reage
A não ser quando se trata do estômago.

Que vão assustar com poesias!

A situação é esta:
Enquanto eles estavam
Por uma poesia do crepúsculo
Por uma poesia da noite
Nós propomos
A poesia do amanhecer.
Esta é a nossa mensagem,
Os esplendores da poesia
Devem chegar a todos por igual
A poesia ao alcance de todos.

No mais, companheiros,
Nós condenamos
E isto sim digo com respeito
A poesia dos deuses inferiores
A poesia da vaca sagrada
A poesia do touro furioso.

Contra a poesia das nuvens
Nós propomos
A poesia da terra firme
Cabeça fria, coração apaixonado
Somos pés-no-chão decididos
Contra a poesia de café
A poesia da natureza
Contra a poesia de salão
A poesia da praça pública
A poesia de protesto social.

Os poetas desceram do Olimpo.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

ATO V - Poemas - Jessica Freudenthal


eric blog
ANO I
N.5
São Paulo
2012


Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco existe.
Tatiana Salem Levy, “A chave de casa”


ATO V

Poemas escolhidos de Jessica Freudenthal

Poemas extraídos de Hardware
Plural Editores: La Paz, 2009.
2° edição revista e ampliada.

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2011.


1. Subtração poética
Para Raúl Zurita

escrevo com medo
desde o medo
de pôr a palavra
a palavra incorreta

poetiza! poetisa!

poetita de merda

Medo
morro
morro
de medo
de não saber
de onde venho

da Bolívia
dizem que venho

bolivianita

que bonita palavrita

vazia

escrevo com medo

vazia

escrevo com tédio

não sou de parte alguma

Chukiago Marka não existe

somente a pedra
o silêncio

as caveiras

ecoando
             ñatita ñatita
recitando

vem a morte
ecoando

Escrevo com medo

a palavra se corta
a palavra se
Corta
a palavra
se corta
a
palavra se
corta

Chukiago Marka não existe
                                                 é apenas um nome
escrito com medo

escrevo como posso

não penso
nos criticantes nem nos amantes
tampouco nas consoantes
somente nas assonantes

Medo

Chukiago Marka não existe

não há alfabeto
para dizer

qual será a letra milenar para escrever?

Erro

poetita de merda.


2. Xis

Este poema              se                 desfaz
se despedaça                                nos vincos do silêncio
lenta
           mente
           tentando sujeitar-se          ao verbo
           a um adjetivo                    que não existe.

Este poema se rompe:
                                                     Acaba de parir outro poema.
se esvazia da forma
e no fundo está o pronome.

                                                     Meu coração morre
                                                     de rir
                                                     quando me vê chorar.
Este não é um poema.
Isto não é um poema.

É um fragmento incompleto do abismo,
um simulacro de                                                   fuga
pura ginástica cerebral,
um pálido pedaço de papel,
Todos os pontos suspensos...


3.  Os mortos

“Os mortos estão nesta terra
cujo mistério evapora e os abriga”.
Paul Valéry

Silenciados, esfarrapados,
ausentes e com cicatrizes,
debaixo das sombras se escondem como aranhas,
irrompem escuridões espessas e rasgadas.

Se ferram entre arames,
entre bálsamos traiçoeiros
a terra que se contrai.

Nós não podemos nada 

Dizer nada
                                                               Tocar nada 
                     Ouvir nada                        Morrer nada
Viver nada

Apenas os silenciados e esfarrapados,
os que se quebram e agonizam
podem arder como velas.

Nós apenas somos feitos de abismos:
O tempo nos despreza.


4. Poeira

Atravessar a memória,
as palavras suspensas
    de repente
nas esquinas.

Pensar,
ficar quieto
e avistar o silêncio
pelo olho do mundo.

Atravessar o esquecimento
trazendo nas costas a memória,
os remendos do tempo
e o alento inacabado
da luz.

Dar um passo
para o abismo.

Cair
irremediavelmente
dentro
de si mesmo.


5. Mitos

O mito
prato fundo
circular

A mesa da origem
ordenada
posta

na cabeceira o homem
a mulher à sua esquerda
e o sal
próximo do fruto
testemunhando o incômodo
do porta-guardanapos e seus entalhes

Servidos
os olhos de Tirésias,
o pescoço de Jocasta,
a boca de Antígona,
em salmoura

Os pés de Édipo
vem

O azeite

impregnado na linguagem
sobre a medida voraz do dia
que vê o início
de uma trégua
entre os pratos quebrados.



Posfácio
A ginástica cerebral de Jessica Freudenthal
Juan Carlos Ramiro Quiroga

Hardware (La Paz, 2004), de Jessica Freudenthal Ovando é a evidência indiscutível do fracasso da decisão do jurado na eleição dos ganhadores das cinco versões do Prêmio Nacional de Poesia “Yolanda Bedregal”, com a exceção de Antonio Terán Cabero e Jorge Campero.

Em cada anúncio dos ganhadores desse prêmio nacional as menções são mais alentadoras e sugestivas do que os próprios premiados. Isso ficou claro a partir do momento em que a Plural Editores, a engrenagem principal de “Yolanda Bedregal”, começou a divulgar os resultados em sua linha de difusão e promoção.

Efetivamente, Hardware é um livro de poesia excepcional pela beleza lacerante de suas ironias e a despojada polifonia de leituras (Tristan Tzara, Sylvia Plath, Roque Dalton, Paul Valéry, Humberto Quino Márquez, Pope, Charly García, Agustín Bartra, Yamilé Paz Paredes) que vem a perfilar mais que apoiar a consciência fatalista da autora.

Tal como o crítico e semiólogo francês Roland Barthes, Jessica Freudenthal realiza uma leitura personalíssima das mitologias contemporâneas (o eterno feminino, o trabalho intelectual, o doméstico ou familiar), até deslocá-las de seus significados tradicionais por outros que são talvez mais reais ou atuais. A partir desse “abismo” lança seus dardos.

Não há em Hardware nem um pouco da complacência, da contemplação e da inocência feminina (características da mulher submissa e obediente), mas ao contrário: a descortesia, a intimidação e o sarcasmo de Lilith, a primeira mulher criada por Deus.

A partir desse ponto de vista, o ambiente familiar e doméstico não é o que parece ser, senão o que está a ponto de revelar o fio da linguagem de Jessica Freudenthal. Sua palavra é uma espada que fere de ironia os valores mais profundos da cotidianidade.

Indo mais além, os poemas de Hardware rompem ou quebram a face monótona da realidade comum, quer dizer, se estilhaçam contra as unhas e as boquinhas pintadas da hipocrisia familiar, doméstica e urbana. Nunca mais argumenta Freudenthal ao sonho americano made in Walt Disney.

Ao ser uma crítica do ambiente familiar e doméstico, Hardware é também não pode deixar de ser uma crítica da linguagem que o assinala, porque a ironia funciona em ambos os lados tanto na realidade como na imaginação, porque transforma ambos significados.

Por isso o livro de Freudenthal é, acertadamente dito pela autora, “um simulacro de/pura ginástica cerebral”. Nada mais pontual que esta observação ressaltada no início da obra poética a fim de estabelecer o jogo.

Não obstante, o sarcasmo utilizado em Hardware produz, no ápice de contato com o leitor, um curto-circuito. O poema deixa de ser o poema que vem orientar a existência humana para converte-se em uma simples vantagem: um “poema curita” como diz Freudenthal.

A poesia de Freudenthal vai na mesma direção da poesia de Humberto Quino Márquez: irreverente com as coisas familiares do mundo e também irreverente consigo mesma com a mesma paixão e agudeza da argentina Laura Yasán ou a alegria da chilena Malú Urriola.